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Entre prateleiras

  • Foto do escritor: Karen Neme Mendes Caetano
    Karen Neme Mendes Caetano
  • 14 de jan.
  • 4 min de leitura

Ontem terminei a leitura de mais um livro da Annie Ernaux.


Dela já tinha me apaixonado por A Escrita como Faca, O Acontecimento e, acima de tudo, pela exposição Exteriors no MEP de Paris, onde ela escolheu algumas fotos do acervo deles e escreveu textos curtos para acompanhar. Meu tipo preferido de exposição.


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Olhe as Luzes, Meu Amor é um diário dos passeios dela no Auchan, um hipermercado francês (que tentei ir uma vez em La Défense e fiquei nervosa de tão grande).


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A ideia é simples e genial.


O formato de diário me interessa muito sempre.

Adoro a transformação do banal em extraordinário. Em poesia.

E… Assumo: eu tenho meio uma paixonite pelo assunto supermercado (como lugar de encontro, memória e observação).


Lembro que há um tempo atrás, jogando ideias de exposição pra cima com as meninas do coletivo, surgiu a questão de onde encontrar a “mulher comum” (acho que nem existe a mulher comum, mas isso é outra discussão). Na hora apareceu na minha cabeça uma imagem de exposição em supermercado, de linguagem visual de promoção, de sentimentos embalados como produtos, de reações emocionais dispostas em prateleiras. Só de lembrar, as ideias já voltam a pipocar loucamente aqui. Na época a sugestão empacou, mas ainda vive encapsulada.


Meu dia a dia passa pelo mercado pelo menos umas 3 vezes por semana. Às vezes, passada rápida na volta pra casa, às vezes buscar uma coisinha e sair com vinte, às vezes puro passeio mesmo.


Quando viajávamos, meu pai sempre colocava o mercado como um dos primeiros destinos. Acho que é uma das melhores formas de se entender um lugar, uma cultura e suas pessoas.


Eu sigo a tradição, não resisto. Só Deus sabe quantas horas de Paris eu passo no Monoprix. Quantos temperos gostosos eu trouxe de Roma. Que azeite gostoso voltou de Buenos Aires. O estoque de desodorante que voltou da Alemanha. Quantas latinhas de atum vieram de Lisboa. Quantos vidros de azeitona do El Corte Inglés em Madri. Etc, etc, etc.


Mas não preciso ir tão longe, não. Quando em Itu, passo no Delta. Quando em Bauru, escolho o hotel perto do Confiança.


Nesse ambiente específico também ocorre um fenômeno raríssimo: sou simpática e faço amizade. Quando vou com a Dona Sônia então, óbvio que muito mais.


E tem um monte de lembrança gostosa, né?


Quando eu era pequena, o mercado do shopping Eldorado tinha uma área de importados que meu pai adorava. Voltávamos com várias delícias.


Um dia acabou a luz lá, a vó Carolina estava junto. Meu pai começou a cantar Parabéns a Você naquele vozeirão lindo pra que a gente pudesse encontrá-lo.


Outro dia, em um mercado daqueles de atacado, preparando pra uma festa, com uma peça inteira de parmesão no carrinho, chegam Tita e minha mãe com uma lata de 5 litros de leite condensado.— Mas a gente não faz doce!— Mas é tão linda a lata enorme…


A loucura do primeiro mercado da Eurotrip de 2008, foto abaixo.


E um sábado que vi o Dunker no Empório e fiquei o seguindo, acompanhando o que ele ia fazer pro churrasco. Sem coragem de falar: “Oi, sou sua fã, ouço sua voz o dia inteiro”.


O ataque de choro incontrolável ao ver o pêssego amassadinho que meu pai gostava no St Marché, na primeira vez que fui depois que ele se foi.


E aquela vez na Lafa, que era meu aniversário, e eu, Jane, Dani, mami e tia Evelyn compramos o que foi o melhor piquenique da história, com direito a bolo feito de pepino fatiado.


Falando em Jane, em 2019 a gente se encontrou sem querer real-oficial tomando cafezinho de graça no Confiança em Bauru. Ela direto de Paris e eu de Sp. Eu sempre quis encontrar alguém no Confiança. Todas minhas famílias se encontravam lá.


Têm também os dias de guerra-de-Natal no Sta Luzia, que eu e Sonoca encaramos o caos com todo estoque de bom humor possível e sempre voltamos morrendo de rir, apesar dos atropelamentos, empurrões e etc.


Ou esse domingo mesmo, que fiquei verde de inveja ao ver entrar no mercado uma jovem gordinha acompanhada de seu pai velhinho simpático. Eles até falaram comigo. Sorri por fora, sorri porque é lindo mesmo.


Enfim, deu pra entender: assunto querido, né?


Além das lembranças, o que eu acho que também conversa com Olhe as Luzes, Meu Amor:


O filme Ruído Branco (2022), surreal, tragicômico e absolutamente contemporâneo.


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As fotografias dos não-lugares de Andreas Gursky, que escancaram a lógica do excesso.


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Além de observações afetivas, no livro há também a observação das mudanças na sociedade, do apagamento da área de livros e revistas (que perda), da normalização das comidas de regime, etc e tal. Ele fica ressoando.


Mais um livro que enrolei pra terminar, porque o passeio estava bom demais:

“Talvez exista uma melancolia específica dos hipermercados.”


Entre as prateleiras e os corredores, observo e sou observada, com meus desejos embalados, catalogados, expostos, em promoção num corredor infinito de histórias que nunca se esgota.



Eu e a Pá, em Lisboa, 2008.
Eu e a Pá, em Lisboa, 2008.

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